Constituição e cooperativismo
Constituição e cooperativismo, por Marco Aurélio Borges de Almada Abreu
XV Congresso Brasiliense de Direito Constitucional
“Ano Internacional das Cooperativas”
Primeiro Painel – Constituição e cooperativismo
– Adaptação do pronunciamento de Marco Aurélio Borges de Almada Abreu (*)
“Antecedendo-me, o Ministro Roberto Rodrigues
narrou os esforços de líderes cooperativistas durante a Assembleia
Nacional Constituinte no sentido de inserir na Constituição vigente as
justas prerrogativas do movimento cooperativo. Márcio Lopes de Freitas,
presidente da OCB, por sua vez, fez alusão aos esforços liderados pela
entidade para aprimorar a legislação infraconstitucional.
Considero-me muito curioso, e uma de
minhas curiosidades vem de como as leis são construídas. Nesse sentido,
ainda que não sejam juristas (como também não sou), com certeza esses
dois homens trouxeram contribuições relevantes ao cooperativismo, porque
eles enfrentaram uma questão primordial: o cooperativismo precisa de
leis que regulem de forma adequada o seu funcionamento.
Maior expoente de sua geração de cooperativistas, Roberto Rodrigues
foi um dos líderes que, de forma muito eficiente, trabalhou para a
construção de um marco legal para o cooperativismo, em particular para o
ramo crédito. A atual geração, da qual eu e o Márcio fazemos parte, tem
procurado dar continuidade a esse trabalho.
Vou abordar, nesta oportunidade, a Ordem
Econômica e Financeira na Constituição. As palavras dos doutores Roberto
e Márcio foram importantes para situar-nos no ambiente em que o texto
constitucional e lei complementar que trata do cooperativismo de crédito
foram concebidos, assunto que está diretamente relacionado ao
ordenamento econômico e financeiro.
Fundamentado nas explanações que já foram feitas, quero apenas
recapitular alguns pontos de ordem cronológica, com o intuito de
compreender a lógica que subsidiou o desenvolvimento do cooperativismo
no país.
Essa lógica decorre da história da criação
do cooperativismo nos Estados Unidos da América, uma história curiosa e
inspiradora. Contam os registros que o milionário Edward Filene entendeu que o sistema financeiro americano podia ser mais justo se o cooperativismo de crédito se desenvolvesse ali
e, então, resolveu dedicar parte de sua fortuna para estruturar o
sistema cooperativista de crédito americano. Conta a história que,
questionado por outro milionário sobre o motivo de ele gastar seu
dinheiro com cooperativas, Filene respondeu: “Bom, você gosta de iate e
gasta seu dinheiro com iate. Eu gosto de cooperativa e gasto meu
dinheiro com cooperativa. Cada um se diverte do seu jeito!”.
Democrata visionário, Filene contratou o advogado Roy Bergengren para formatar o projeto de criação do cooperativismo americano, ainda na década de 1920.
Na oportunidade, Filene perguntou o que era preciso para dar aos
Estados Unidos um cooperativismo de crédito organizado, que pudesse
abrigar e tornar efetiva sua doutrina. Conversando sobre o assunto, os
dois chegaram a conclusões que foram anotadas em uma pequena folha de
papel. Essa folha ficou guardada por 50 anos e hoje é relíquia exposta
em museu.
Nela estavam escritas as seguintes orientações para dar aos Estados Unidos um cooperativismo de crédito efetivo: a) consiga leis que regulem adequadamente as cooperativas; b) estabeleça pelo menos três cooperativas em cada estado americano; c) instale uma federação estadual em cada estado; d) e institua uma confederação nacional. Essa era a fórmula, composta por quatro pontos muito simples, sendo o mais importante deles a aprovação de leis que regulassem adequadamente o cooperativismo de crédito.
A geração do doutor Roberto Rodrigues apreendeu isso muito bem e
construiu, a partir dos passos mencionados, um arcabouço jurídico que
está inacabado, mas fundamentado em bases sólidas, que permitem um
desenvolvimento capaz de contribuir para a organização do cooperativismo
de crédito no Brasil. Infelizmente, esse movimento só ganhou força no
país a partir de 1980, cerca de sessenta anos depois de seu início nos Estados Unidos, o que aponta uma defasagem de tempo muito grande.
No Brasil, a primeira iniciativa de construção do cooperativismo financeiro ocorreu em Nova Petrópolis (RS), em 1902, através do trabalho do padre Theodor Amstad.
Com aplicação em qualquer aspecto da atividade econômica, o
cooperativismo de crédito se desenvolveu de forma muito competente, mas
em um ritmo acometido por fatores alheios, como a falta de uma
legislação adequada, que lhe assegurasse condições para um funcionamento
estável.
Um dos pontos altos dessa história, que já ultrapassa um século, é o período compreendido entre as décadas de 1930 e 1940,
no qual o país contava com um grande número de cooperativas. Alguns
bancos importantes, inclusive, iniciaram sua trajetória como
instituições cooperativas. O Banco Bamerindus, que hoje integra o HSBC,
por exemplo, teve início como uma cooperativa de crédito.
Nas décadas de 1950 e 1960,
no entanto, o país enfrentava uma série de dificuldades, e o pensamento
sobre como promover o desenvolvimento econômico ainda fundamentava-se
em uma visão muito estruturalista, com o poder central do governo
organizando e controlando a sociedade. Esse debate evolui em 1964 e um evento se tornou muito marcante nesse período: a criação do Conselho Monetário Nacional (CMN) e do Banco Central do Brasil (BCB), com o desafio de dar ao país um sistema financeiro apropriado para aquele momento.
Autoridade monetária até aquele período, a Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc) foi transformada no atual Banco Central e, ainda em 1964, foi promulgada a Lei 4.595,
que até hoje organiza o sistema financeiro nacional. Tal projeto de
sistema financeiro nacional, no entanto, não contemplava o
cooperativismo de crédito.
No ano seguinte, o CMN, por proposição do
BCB, aprovou uma resolução lacônica para tratar do que seria o
cooperativismo de crédito: a Resolução nº 5 11/65.
Além disso, agiu de forma a reduzir o tamanho do cooperativismo de
crédito, uma vez que o segmento não estava naquele planejamento inicial,
que previa apenas dois tipos de instituições para compor o sistema
financeiro nacional: instituições bancárias públicas e instituições bancárias privadas. As principais instituições financeiras seriam públicas, muito grandes, como o Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal.
Condicionadas pela nova legislação, as
cooperativas passaram, então, por um momento de fortíssima restrição ao
seu funcionamento, o que fez com que perdessem participação de mercado. Esse cenário levou o segmento a chegar à década de 1980
com apenas 0,2% de participação no mercado financeiro, remanescendo
pouquíssimas cooperativas. Era preciso, portanto, reconstruir o sistema
de crédito cooperativo no Brasil.
A partir de 1978, foram iniciados diversos debates sobre o tema, com o principal desafio girando em torno da identificação dos motivos pelos quais o cooperativismo não tinha dado certo no Brasil
até aquele momento e da busca por soluções. Tais discussões levaram a
uma fórmula parecida com a americana, mas adequada ao contexto
brasileiro, que apontava três fatores que influenciaram negativamente o
cooperativismo de crédito nacional: primeiro, faltou autorregulação e supervisão (as cooperativas ficaram muito “soltas” e não fizeram o que deveriam fazer); segundo, faltou capacitação (para que as pessoas pudessem dirigir adequadamente os empreendimentos cooperativos); e terceiro, faltou integração entre as cooperativas e entidades operacionais de segundo e terceiro graus.
Ainda que identificada a “fórmula” para a reconstrução do
cooperativismo no país, seus itens precisavam estar amparados em leis
que pudessem assegurar a sua aplicação.
Em 1980, graças à liderança transformadora e pioneira do dr. Mário Kruel Guimarães,
o BCB mudou de atitude, sem que houvesse, contudo, mudanças na
legislação ou regulamentação, permitindo, inclusive, a formação da
primeira cooperativa central ainda naquele ano. Dr. Mário, com o apoio
do BCB, foi o idealizador, criador e inspirador do que hoje conhecemos
como “SISTEMA de crédito cooperativo“. A primeira resolução mais analítica sobre o segmento só viria em 1992 (Resolução nº 1914).
Em 1988,
fruto dos debates iniciados dois anos antes, a mudança do ordenamento
jurídico do cooperativismo de crédito começou se tornar mais concreta.
Justamente pelo trabalho do doutor Roberto Rodrigues, foram ampliados os debates, no âmbito legislativo, acerca de uma melhor regulação para o segmento.
Lembrados durante a Assembleia Constituinte,
ganhamos o primeiro ponto de tratamento constitucional de nossa
história, que veio materializado no art. 192. O texto passou por
alteração em sua redação em 2003, mas nossa conquista permaneceu. A
versão atual do art. 192 da Constituição Federal
diz o seguinte: “O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a
promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses
da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as
cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que
disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas
instituições que o integram”.
Notem que o sistema financeiro nacional é
constituído por bancos, corretoras, financeiras, distribuidoras de
títulos e valores imobiliários, administradoras de consórcio, entre
outros. Há, portanto, um grande número de organizações que o compõem, no
entanto, nenhuma delas, nem mesmo a bancária, é citada no art. 192 de
forma específica. Qual o motivo de as cooperativas de crédito terem sido citadas de forma explícita no art. 192? É porque haviam sido esquecidas em 1964, requerendo menção inequívoca no novo ordenamento constitucional.
Com sua participação no sistema financeiro nacional garantida pela
Constituição Federal, as cooperativas continuaram sendo reguladas, em
mais detalhes, por resoluções do Conselho Monetário Nacional
que, uma após a outra, foram-lhes conferindo novas prerrogativas e
melhorando suas condições de funcionamento. Felizmente, a parceria do
segmento com o BCB sempre foi muito produtiva e, desde 1980, não culminou em nenhum retrocesso regulamentar, mas somente em avanços.
O art. 192 pressupõe leis complementares
para regulação específica de cada segmento do sistema financeiro
nacional e, com certeza, todas as instituições que o compõem anseiam por
sua própria lei complementar. No entanto, a única lei complementar
regulando o dispositivo constitucional que foi promulgada até esta data é
a Lei Complementar 130,
que disciplina o cooperativismo de crédito brasileiro. Dessa forma,
além de o segmento merecer alusão específica no art. 192 da
Constituição, ele possui, também, uma
lei complementar que assegura todos os avanços que o cooperativismo de
crédito conseguiu obter perante as autoridades públicas desde a década
de 1980 até a data de sua promulgação.
Tais avanços estão bem construídos e consolidados na Lei Complementar 130 que, em seu art. 2º, por exemplo, assegura às cooperativas de crédito o acesso a todos os instrumentos financeiros do mercado;
ou seja, uma cooperativa de crédito pode prestar serviços financeiros
aos seus associados com a utilização de todos os instrumentos
financeiros disponíveis. O efeito prático disso se traduz na amplitude
do atendimento aos associados. Hoje, quase não há diferenças, do ponto
de vista de portfólio, entre ter relacionamento com uma cooperativa de
crédito e ter uma conta em um banco, pois qualquer produto financeiro
que se encontra em um banco também se encontra em uma cooperativa de
crédito.
Outro aspecto importante a ser destacado
na LC 130 se encontra no artigo quarto, que regulamenta a composição do
quadro social das cooperativas, permitindo que possam atender até mesmo às pessoas jurídicas,
algo que já acontecia em diversos outros países e que é fundamental
para o adequado funcionamento dessas instituições. O art. 5º, por sua
vez, organiza a governança corporativa das cooperativas de crédito, garantindo que sua administração seja feita por profissionais.
Os arts. 14 e 15 tratam da organização sistêmica
das cooperativas de crédito. Nela, as cooperativas se organizam em
cooperativas de primeiro grau (que atendem à sociedade em geral), de
segundo grau (que organizam em melhor escala, regionalmente, as
atividades de um conjunto de cooperativas de crédito) e de terceiro grau
(que organizam nacionalmente o segmento de cooperativas de crédito,
garantindo ganhos de escala nacionais).
No art. 16, o segmento ganhou a condição
de as entidades de segundo e terceiro grau do cooperativismo de crédito
poderem interferir na administração de uma cooperativa de primeiro grau,
caso ela tenha problemas e apresente desequilíbrio em suas contas.
Dessa forma, por via da autorregulação, o cooperativismo de crédito tem condições de resolver seus próprios problemas.
Como é possível verificar, os três pontos cruciais para o
desenvolvimento do cooperativismo de crédito nacional, definidos ainda
na década de 1980, foram observados e constam na Lei Complementar 130,
consolidando todos os avanços que líderes como os doutores Roberto
Rodrigues e Márcio Lopes contribuíram para conquistar ao longo do tempo.
Fruto dessa história, o sistema
cooperativo de crédito brasileiro é composto, atualmente, por 1.204
cooperativas de primeiro grau (singulares), 38 cooperativas de segundo
grau (centrais), 4 cooperativas de terceiro grau (confederações) e 2
bancos cooperativos. Já estamos atendendo a mais de 6,0 milhões de
brasileiros, algo que para nós é muito importante. Reunidas, as
cooperativas já possuem cerca de 5.000 pontos de atendimento,
constituindo a segunda maior rede de atendimento do sistema financeiro
nacional. A participação média de mercado do segmento, que era de 0,2%
em 1980 (antes da organização do sistema e do seu tratamento, inclusive
com suporte regulamentar), hoje é de 2,5%; e já administramos recursos
na ordem R$ 100 bilhões (considerando os ativos apenas das cooperativas
singulares). Tudo isso, fruto de um trabalho de fôlego, que vem sendo
construído ao longo dos anos.
Hoje, podemos afirmar, com muita tranquilidade, que o cooperativismo de crédito faz parte do sistema financeiro nacional, que as cooperativas de crédito são adequadamente reguladas e supervisionadas pelo Banco Central e que, cada vez mais, o cooperativismo de crédito desponta como um instrumento útil para a organização da sociedade. Isso se dá por meio da eliminação de determinados excessos que são praticados por instituições financeiras convencionais, a partir da viabilização do acesso a produtos e serviços financeiros em condições justas e dignas.
Dito isso, concluo aqui a minha
manifestação, agradecendo, mais uma vez, a toda a organização do evento
pelo convite que me possibilitou estar aqui com vocês.”
fonte original: http://www.cooperativismodecredito.coop.br/2013/07/constituicao-e-cooperativismo-por-marco-aurelio-borges-de-almada-abreu/, consultada em 31/05/2018.
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